Em várias tardes enquanto minha mãe costurava ouvi suas lembranças sobre os alunos que teve em Coari no Amazonas, sobre as crianças com quem convive na escola em Santarém, cidade que nasci no Pará. Cresci vendo minha avó alfabetizando crianças e recitando seus próprios poemas enquanto varria o quintal ou tratava de um tambaqui no jirau da casinha no Mapiri. Acompanhei um bom número de tias se formando professoras e trabalhando em comunidades ribeirinhas ou nas periferias de Santarém, Altamira, Parintins, Manaus. Nunca imaginei que em nossa família, logo eu e uma prima próxima, conseguiríamos virar professoras doutoras na área das Ciências Humanas. Não passava pela minha mente e jamais cultivei a esperança de ser o que sou hoje, escritora de ficção, professora de ficção, antropóloga. A educação nos dá tanto para que a gente dê ainda mais aos outros.
Lembro da tarde que mamãe me contou do abraço que recebeu de um jovem que todos chamavam de bandido, e ela o alfabetizou. Também nunca vou esquecer da minha tia abrindo a porta para meninas pequeninas que iam fazer aula de reforço com ela. Quase não dormi essa noite, tive muitos pesadelos, lembrei de quando morei em ocupação, do medo constante que a gente sentia da polícia chegar e descer a porrada, mas isso era aplacado pelas tardes que mamãe tirava minha lição. Ela sempre fala sobre esse momento e se arrepende de ter sido ingênua. Ao que sempre respondo: não se arrependa de acreditar nos nossos direitos. As mulheres da minha vida plantaram dentro de minha existência essa mágica de acreditar no estudo, e eu tinha muitos motivos para desistir, não fui diferente de muitos curumins que a gente conhece.
Ontem vi um vídeo do governador do Pará mostrando os equipamentos da starlink, empresa do Musk, e temi pelo futuro. Uma educação na qual professores não importam, alunos não importam, estruturas físicas escolares não importam, abraços não importam, olho no olho não importa. E acusa os ocupantes de criarem notícias falsas. Tantas palavras falsas foi o que recebemos desde que sou criança e vejo nas casas um cartaz de um Barbalho colado na parede, feito santos.
As telas e o EAD nas comunidades quilombolas e indígenas, é só o começo de um plano maior de lucro e descaso com a educação. Também me magoa muito que essas coisas não sejam importantes para muitas pessoas que não são do Norte. Muitas olham e pensam: coisa deles lá de cima, boa sorte! Não somos parte desse país, e toda vez que escrevo essa frase começo a chorar. Só quem ama esse território vai saber o que é ser parente, vai entender a dor que todos nós estamos sentindo. Como podem pedir para que o ódio não me visite? E ainda me perguntam o motivo de eu querer escrever livros que se passam ao Norte. É a flecha que tenho, e dela não abro mão.
Monique Malcher.
Meu coração de professora lendo e chorando com seu relato. É inacreditável o que fazem e é revoltante o silêncio sobre uma região imensa do nosso país. Que a educação continue nos motivando nas revoltas. Um abraço...
Outros tipos de colonização se alastram pelas imensas terras de nosso país, principalmente as que estão mais distantes dos <olhos> do poder central. Toda vez que te leio sinto que aprendo sobre coisas que deveria saber desde criança. Um abraço