Três anos de casamento
Deitar no corpo do tempo. Inventar o terror e também a felicidade.
São três anos de casadas.
Antes dela, apenas outras que foram doadas, porque os antigos donos conseguiram novas, e até mesmo uma que foi de uma pessoa morta.
Morei em um lugar frio em 2019.
A dona abriu a porta e disse pode dormir naquela cama ali, menina. Foi do meu filho, às vezes ainda vejo o rosto dele quando venho limpar o apartamento.
Aluguei o apartamento.
Sempre gostei de duas coisas: mistério e economia.
Era um lugarzinho feio, muito feio.
Era o que dava, seria eu e o espírito.
Nunca vi o rosto, mas imaginei muitas vezes. Principalmente nas horas sagradas do dia. Seis, meio-dia, seis. Horas que me punha dentro da lágrima que sempre habitei e pensava ser casa. Por vezes ouvia um choro a competir com o meu, um choro que tocava o lençol, mas queria minha bochecha. Essa parte de meu corpo que encostava única no colchão, que aguentava o peso de minhas agonias e preocupações.
Eu inventei o terror.
Durmo em cima de um corpo,
durmo em cima de um luto,
por vezes não durmo.
Como poderia? Na minha percepção a morte não vai embora, as coisas ruins só tiram o casaco, trocam de rosto, calam por um instante apenas. Aproveite enquanto ela dorme, criança. Era o pensamento que me acompanhava.
A cama em que estou deitada, enquanto escrevo no agora, foi a primeira que comprei com minhas economias, a primeira vinda de loja, a primeira vestida de plástico, a primeira sem cicatrizes definidas, a primeira que nunca soube o que era receber o peso de uma tristeza. A primeira que ouviu cuidado, que ela é nova.
E fui comprando suas roupas, vivendo amores por cima de suas costelas, chorando pelas coisas partidas, comendo pipoca, lendo livros, imaginando cenas, me tocando no silêncio, ouvindo música de olhos fechados, passando uma virada de ano, recebendo notícias que mudaram minha vida. Até mordendo minha mão pra cessar uma crise. Disso que é feito um casamento, de estar comigo, mesmo que o mundo caia.
E a espuma é boa, segura o baque.
Não piso mais em pesadelos que me deixam cair, o colchão se tornou extensão de meu corpo. Tenho sido a que me segura, e sabe, porra, como é difícil cair com graça, sustentar os dias, ser real, ser uma mulher que vezes se sente corpo mole, vezes cartilagem, vezes osso. Sou de verdade, e não existem verdades. Sou de ficções. Guardo milhares de anos em uma coberta.
Eu inventei a felicidade.
Não é preciso ir ao sítio arqueológico dos outros para encontrar nossos artefatos. Digo primeiro por mim. É neste pequeno apartamento, mais bonito que o outro, na cidade de concreto e loucura, que fui de duas malas para livros, canetas, impressora, mesas, colheres, facas, garfos, tapetes, pílulas, carimbos, venenos, cadeados, ventilador, geladeira, estantes, decorações, tudo… e colchão.
Agora não descanso nos braços dos mortos, não invento apenas um sentimento, uma conclusão, mas traduzo a linguagem que me ensinaram. Levantei toda vida de meu caixão. Que bom a trégua, que bom o peraí por um instante. Estou viva e nos últimos três anos de trinta e seis, finalmente, descanso todos os dias. Os mortos só me visitam quando eu peço.
Monique Malcher.
fantástica! me identifiquei tanto 💜
Te ler... que maravilha!